terça-feira, 11 de novembro de 2014

Sobre negros

Segunda-feira. A faculdade é Unisuam. O debate é sobre racismo na mídia, ainda que tenha se falado, majoritariamente, sobre "cotas raciais" em universidades. É a primeira e última vez que comento sobre racismo. Primeiro, pois: nós, brasileiros, não estamos preparados para ouvir opinião contrária à nossa. Segundo: uma discussão sobre negros suscita apenas o preconceito contra negros e o preconceito a favor de negros. Preconceito contra negros é ditado por uma ignorância genuína. A noção de uma cor superior à outra não tem base científica ou lógica. Preconceito a favor de negros é ditado pela ideologia. Aliás, a ideologia é o maior empecilho para que se trate do assunto "negros" no Brasil. Não temos maturidade. Nossa tônica é a de adequar nosso pensamento à nossa ideologia, isto é, nosso ponto de partida não é o embasamento em fatos ou a partir da História da humanidade. Somos alavancados a pensar a partir de um vício ideológico.

É um tanto estranho que, num debate de três horas sobre negros, ninguém tenha citado a figura do principal líder da Comunidade Quilombola dos Palmares: Zumbi dos Palmares. Mais estranho é justificar, como justificou Ludimila de Souza Cruz - uma das debatedoras -, que "cotas raciais são uma dívida com a sociedade negra".

A fonte é o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil:

Zumbi, o maior herói negro do Brasil, o homem cuja data de morte se comemora em muitas cidades do país o Dia da Consciência Negra, mandava capturar escravos de fazendas vizinhas para que eles trabalhassem forçados no Quilombo dos Palmares. Também sequestrava mulheres, raras nas primeiras décadas do Brasil, e executava aqueles que quisessem fugir do quilombo.

Tendo como base o raciocínio de Ludimila de Souza Cruz, que os descendentes daqueles que escravizavam têm uma dívida a pagar aos escravizados, é correto afirmar que um descendente de Zumbi dos Palmares - ou seja, um negro - tenha uma "dívida com a sociedade negra". O mesmo serve para os descendentes de José Francisco dos Santos, o "Zé Alfaiate", ex-escravo que negociava africanos em Salvador e no Rio de Janeiro. Quem mais? Bárbara Gomes de Abreu e Lima era negra, dona de um casarão e tinha sete escravos, assim como a angolana Isabel Pinheira. Quem mais? Os historiadores Francisco Vidal Luna e Herbert Klen registraram que, em Sabará, Minas Gerais, "havia mais mulheres negras e pardas donas de escravos que senhoras brancas". Numa breve busca em o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil é possível citar outros exemplos. A conta de negros contra negros não fecha.

O próprio conceito de "cota racial", ao qual Ludimila de Souza Cruz se refere, é furado. Pior: ele pode ser justificado com base em nosso Dicionário. Cito-o: "Negro. De cor escura; muito escuro; preto; que pertence à raça negra; (...)". Subdividir a humanidade em raças é, igualmente, um erro. Negros deveriam unificar seus discursos, afirmando e uniformizando a raça humana e condicionando todos ao mesmo parentesco. A visão deve ser elementar e simplista: somos macacões que evoluíram um tantinho e aprenderam a falar; não devemos nos levar a sério a ponto de nos acharmos um superior ou inferior ao outro. William Reis, integrante do grupo AfroReggae, afirmou que "tinha a cabeça fechada, contra cotas raciais; e agora abriu a mente e é a favor das cotas". Antes, ele achava um absurdo alguém defender uma opinião a favor das cotas. Agora, ele acha um absurdo alguém defender uma opinião contra as cotas. Continua desprezando a opinião contrária à sua. Continua cabeça fechada.

Ainda sobre "cotas raciais", houve quem achasse na plateia do debate - seguida de aplausos - que aquele estudante que tem condição para pagar uma universidade particular não tivesse o direito de tentar ingressar numa universidade pública. É um tantinho irônico você ter essa opinião sendo estudante de - Epa! - uma universidade particular. Ou seja, o raciocínio propõe extinguir o próprio conceito de universidade pública, restringindo-a a um grupo seleto de pobres. Melhor que discutir achismos seria pautar-se de fatos concretos e que dizem respeito à proposta do debate. Quer um fato concreto? Paulo Henrique Amorim, jornalista da Rede Record e blogueiro, foi condenado por "injúria racial" a Heraldo Pereira, jornalista da Rede Globo. Paulo Henrique Amorim afirmou que "Heraldo Pereira era um negro de alma branca" e "que não conseguiu revelar nenhum atributo para fazer tanto sucesso, além de ser negro e de origem humilde". Sim: um caso de racismo na mídia. Sim: um caso de racismo na mídia que não foi abordado em um debate sobre racismo na mídia. Foi dado espaço para outros assuntos relevantes, como o questionamento de piadas no Zorra Total, programa de humor que tem como único objetivo - vejam só! - fazer piadas.

O caso de Heraldo Pereira deveria ter sido explorado do primeiro ao último minuto do debate. Não foi explorado porque ninguém tem conhecimento do caso. Porque nenhum movimento social de políticas afirmativas nunca se manifestou. Porque nenhum artista descolado escreveu um artigo, nenhum sindicato fez barulheira, nenhuma Ludimila de Souza Cruz esperneou, tampouco o grupo AfroReggae tocou atabaque em forma de protesto. O caso de Heraldo Pereira esbarra na questão ideológica. Heraldo Pereira, um negro e um jornalista de destaque na Rede Globo, não estampa a agenda dessa gente. Conforme deixado claro na palestra, o objetivo é sempre ir de encontro aos "negros oprimidos", personificando-os como vítimas da sociedade, assim, estereotipando os próprios negros à esta condição. Eu aboliria este discurso de coitadismo. Aboliria o sistema de "cotas raciais". Negros passaram a vida inteira buscando ser tratados de forma igual aos brancos. Cotas estimulam exatamente o contrário: que o negro continue a ser tratado de forma diferenciada. Aboliria o Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de Novembro, data de morte de Zumbi dos Palmares, o negro que escravizou negros. Aboliria a ideia de enaltecer o debate ideológico no Brasil. E, caso sobrasse tempo, institucionalizaria o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil como livro didático nas escolas públicas. Agora, chega. Não discuto mais sobre o assunto.