segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Resenha: O mercado de notícias, de Jorge Furtado

Vinte e um de Agosto. Botafogo. Fui assistir ao documentário O mercado de notícias. No cinema, aproximadamente vinte e cinco pessoas. O local: Espaço Itaú de Cinema. A companhia é irrelevante.

O documentário transcorre intercaladamente a uma representação burlesca da peça The Staple of News, de 1625, escrita por Ben Jonson, o grande rival de William Shakespeare nos palcos londrinos. O diretor de O mercado de notícias é Jorge Furtado. No longa-metragem, debate-se a apuração jornalística, a parcialidade – ou imparcialidade – da notícia e o papel do jornalista na sociedade.

Sempre me incomodo quando alguém se põe a comentar sobre a atividade do jornalista, mesmo que este desconheça a realidade de um trabalho jornalístico. Ainda que tenha estudado jornalismo em algum momento da sua vida, Jorge Furtado faz parte dessa turma que se mete a comentar sobre a profissão sem conhecimento de causa. A partir do momento em que Jorge Furtado se propõe a questionar a forma como se faz jornalismo, ele me dá o direito de poder questionar a forma como se faz cinema no Brasil. Eu pergunto: Por que financiamento público para filmes? Eu continuo: Alguém já fez uma pesquisa para saber se o brasileiro quer ter o seu dinheiro gasto em produção nacional? Eu investigo: Será que o boicote a Fernando Collor de Mello também tem a ver com o corte de financiamento público feito às produções brasileiras à época?

Para atenuar a sua falta de conhecimento sobre o trabalho de um jornalista, Jorge Furtado cercou-se, obviamente, de jornalistas. Em O mercado de notícias, precisamente treze jornalistas foram entrevistados e comentaram, basicamente, sobre a política do jornalismo e política no jornalismo. Foram entrevistados: Bob Fernandes, Cristina Lôbo, Fernando Rodrigues, Geneton Moraes Neto, Jânio de Freitas, José Roberto de Toledo, Leandro Fortes, Luis Nassif, Maurício Dias, Mino Carta, Paulo Moreira Leite, Raimundo Pereira e Renata Lo Prete. Quanto ao fato de treze jornalistas – um número emblemático na política – serem entrevistados, é uma mera coincidência.

A ousadia de Jorge Furtado foi tanta que eu fiquei desassossegado na poltrona. Além de questionar a forma como se faz cinema no Brasil, passei a questionar os jornalistas que foram selecionados para o documentário. Sigo os questionamentos: Por que Paulo Moreira Leite foi escolhido? Por que Janio de Freitas e Mino Carta estão lá? Quem é Maurício Dias? – juro, eu não o conhecia.

Aliás, o documentário me submeteu a uma busca incessante atrás de informações dos entrevistados os quais eu não conhecia. Seguindo a ordem alfabética, o primeiro foi Bob Fernandes. É um dos fundadores da Revista Carta Capital. Atualmente, é editor-chefe do site Terra Magazine e comenta política na TV Gazeta. Além de ser coautor do livro Bora Bahêea! A História do Bahia Contada Por Quem a Viveu, da Coleção Camisa 13 – Epa! Olhem o treze de novo!

Como Bob Fernandes, Mino Carta, outro entrevistado no documentário, também é um dos fundadores da Revista Carta Capital. Luis Nassif e Maurício Dias são colunistas, também da Revista Carta Capital. Nota-se que a diversidade e a imparcialidade na escolha dos entrevistados também foram mera coincidência.

Li algumas entrevistas de Jorge Furtado. Aliás, algumas não. Li minuciosamente quatro entrevistas de Jorge Furtado: uma no portal UOL; uma na Revista Fórum; outra em O Globo; a última, em Folha de S. Paulo. Em todas as entrevistas, ele conta as razões pelas quais decidiu fazer o documentário, atribuindo a si a responsabilidade de expor os tropeços da imprensa e questionar a qualidade da informação no país. Penso que já seja pretensioso e perigoso demais colocarmos nas mãos de Alberto Dines a incumbência de "observar a imprensa", como ele mesmo propõe. Jorge Furtado é muito mais pretensioso e perigoso do que Alberto Dines. Quando ele se propõe a contestar a imprensa nas telas de cinema, lá estão sendo gastos o meu e o seu dinheiro, sem a nossa permissão.

A tarefa de Jorge Furtado não seria das mais fáceis. O simples fato de traçar um paralelo com The Staple of News o obrigava a tratar de assuntos que a peça de Ben Jonson abordara, como o financiamento de veículos de imprensa e a ética profissional, por exemplo. A abordagem de Jorge Furtado em relação a essas questões foi paupérrima. Foi preciso pinçar declarações isoladas de José Roberto de Toledo e de Fernando Rodrigues, em raros momentos de lucidez do documentário.

José Roberto de Toledo disse: "Quando se tem um banner de uma estatal em um veículo de imprensa, há um problema."

Fernando Rodrigues disse: "O governo gasta, aproximadamente, 1 bilhão e 500 milhões de reais em publicidade e propaganda. E ainda tem sempre aquela discussão, se tem que dar mais pra um veículo e menos pra outro. Não tem que dar pra ninguém!"

José Roberto de Toledo e Fernando Rodrigues estão corretíssimos. A partir do momento em que determinado jornalista ostenta o anúncio da Caixa Econômica Federal em seu Blog, ganhando o meu e o seu dinheiro, causa-me um frio na barriga. Paulo Moreira Leite discorda disso tudo. Justificando o gasto exorbitante de dinheiro público em publicidade e propaganda em veículos de imprensa, ele lembra que "governos anteriores também gastavam e a imprensa não se preocupava desse jeito". A partir desse engodo, Paulo Moreira Leite propõe que os jornalistas – que, segundo ele, se calavam com os governos anteriores – se calem agora. O sofisma de Paulo Moreira Leite recomenda uma estagnação da imprensa.

A discussão do tema poderia ser mais ampla. No entanto, Jorge Furtado, ignorando questões relevantes e que dizem respeito ao meu e ao seu dinheiro, perdeu preciosos minutos tentando provar por a+b que, durante a campanha presidencial de 2010, José Serra forjou ter sido agredido por uma bolinha de papel. São mostradas imagens de um segurança de José Serra em direção a ele e, em dado momento, a bolinha surge da direção do segurança. Em nenhum momento aparece, claramente, o segurança jogando a bolinha de papel. Simplesmente achismo. Simplesmente especulação. E, então, uma questão importante é levantada: quanto de certeza o jornalista precisa ter para se noticiar algo? Renata Lo Prete, sem titubear, respondeu: "Em princípio, 100%. Mas não é o que acontece". Obviamente, Renata Lo Prete está correta. E o próprio documentário de Jorge Furtado comprova a tese. Se o jornalista precisa de 100% de certeza para noticiar algo, o caso de José Serra e seu segurança jamais seria mencionado no documentário, pois não há 100% de certeza de que foi o segurança quem jogou a bolinha de papel.

Ao se atentar ao caso simplório de José Serra, Jorge Furtado me frustrou. Se eu estivesse ostentando um pacote de pipoca na sala do cinema, jogaria para o alto. A oportunidade era muito boa para ele aprofundar o tema. A pergunta era muito boa. Inclusive, cito-a novamente. Cito-a incansavelmente: quanto de certeza o jornalista precisa ter para se noticiar algo?

Inúmeros casos poderiam ser debatidos. Cito um: o goleiro Bruno, ex-Flamengo, foi incriminado porque, através de algumas evidências e provas subjetivas, chegou-se à conclusão de que ele foi o responsável pela morte de Eliza Samúdio. Nenhuma prova concreta. Estou longe de ser defensor do goleiro Bruno. Nem flamenguista eu sou – eles costumam defendê-lo. Mas, antes do julgamento, Bruno virou manchete em todas as capas de jornais de circulação do país. E, apenas depois, foi julgado e veio sua condenação. É discutível dizer se ele foi ou não o responsável. Obviamente, o jornal noticia aquilo que quiser. Faz parte da liberdade de expressão. Mas deve estar disposto a arcar com as consequências que isso pode lhe causar.

Há um dado muito importante, que pouca gente leva em consideração, e deveria ser um divisor de águas no modo como se faz jornalismo e o modo com que se passa a informação. Uma pesquisa da Unesco, em Janeiro deste ano, apontou que o Brasil é o oitavo colocado no ranking dos países com maior número de analfabetos adultos. Outro dado da própria Unesco revela que, dos 36 milhões de adultos analfabetos na América Latina, 38,5% são brasileiros. Os jornais brasileiros deveriam entender para quem estão noticiando e como os brasileiros recebem uma notícia. O simples fato de se estampar na capa de jornal "Goleiro Bruno é acusado de matar Eliza Samúdio" induz um país, que ostenta 38,5% de adultos analfabetos da América Latina, a crer que o goleiro Bruno é o culpado. A partir do momento em que se tem esses números assustadores de analfabetismo, a interpretação de texto por parte do leitor está absolutamente comprometida. O jornal precisa ter o máximo de cuidado para não confundir especulação com fato e vice-versa.

A sala de cinema na qual assisti ao documentário O mercado de notícias estava composta, aparentemente, pelo leitor médio. Creio que ali não havia os adultos analfabetos citados na estatística da Unesco. No entanto, quando foi apresentado o caso de José Serra, onde as suposições apontavam para uma teórica manipulação por parte do segurança, muitos riram, como se, de fato, fosse forjado. A própria abordagem do documentário induz o espectador a crer que foi o segurança de José Serra quem jogou a bolinha de papel. Repito: é simplesmente achismo, é simplesmente especulação.

Se Jorge Furtado pode se aventurar a exibir achismos e especulações despropositadas, eu me aventuro também. Talvez, o fato de José Serra ser do PSDB implique diretamente com o olhar fixo de Jorge Furtado para o tema, ignorando o caso do goleiro Bruno. Jorge Furtado, até por ser gaúcho, é o marqueteiro preferido do PT no Sul. Jorge Furtado, que dirigiu a campanha de Tarso Genro, do PT, à prefeitura de Porto Alegre. Jorge Furtado, que dirigiu a campanha de Olívio Dutra, do PT, ao governo do estado do Rio Grande do Sul. Longe de mim ventilar a hipótese de Jorge Furtado ter se apropriado de seu documentário para fazer proselitismo político e denegrir a imagem de José Serra. De minha parte, também se propagam apenas achismos e especulações.

Bolinha de papel à parte, eu me divertia verdadeiramente quando Mino Carta aparecia no documentário para comentar algo. Perguntado sobre a independência do jornalista, Mino Carta afirmou que há fatos excepcionais que impedem a imprensa de publicar algo na capa do jornal. Lembro-me de um fato excepcional, que impediu Mino Carta de publicar algo na capa de sua revista, a Revista Carta Capital. Na semana em que o Supremo Tribunal Federal decretou a prisão dos mensaleiros José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoíno, a capa da Revista Carta Capital abordava a extinção das pererecas: "Os cientistas ainda temem uma extinção em massa provocada pela ação humana. Mas há uma boa notícia: cai o ritmo de desaparecimento de espécies".

Renata Lo Prete defende que o jornalista deve dizer de qual lado está: "O fato de se dizer qual é o seu lado, é o melhor caminho para que o consumidor verifique se a notícia está manipulada ou não". Podem acusar Mino Carta de petista. Podem, ainda, dizer que a Revista Carta Capital, de Mino Carta, ignorou o maior julgamento do Supremo Tribunal Federal. Mas não se pode negar a autenticidade de Mino Carta. Ele nos demonstra, religiosamente, a cada tiragem da Revista Carta Capital, de qual lado ele está.

Como sou demasiadamente curioso, fui pesquisar quais são os patrocinadores da Revista Carta Capital. E – Epa! – me deparei com anúncio de uma estatal. José Roberto de Toledo e Fernando Rodrigues devem se horrorizar com isso. Imediatamente, cocei o meu bolso. E, em seguida, minha inocência constatou, somente a partir do que disse Renata Lo Prete, que a notícia, sim, está manipulada na Revista Carta Capital.

Outra intervenção de Mino Carta me divertiu. Quando ele, categoricamente, afirmou: "Os Barões Midiáticos acreditam que liberdade de imprensa é poder dizer aquilo que eles bem entendem, sendo verdade factual ou não". Por um momento, concordei com Mino Carta. Estranhei. E logo me dei conta de que Mino Carta, sendo dono da Revista Carta Capital, faz parte do grupo seleto de Barões Midiáticos da grande imprensa. Sendo Mino Carta um Barão Midiático e seguindo a linha de raciocínio do próprio Mino Carta, pode se afirmar que ele acredita que liberdade de imprensa é poder dizer aquilo que ele bem entende, sendo verdade factual ou não.

Mais divertido do que Mino Carta só Maurício Dias. Realmente, eu não o conhecia. E trato de fazer um mea-culpa por isso. Se políticos têm a capacidade de persuadir eleitores através de projetos sociais com viés populista, Maurício Dias tem o dom de engabelar leitores e espectadores com opiniões – também! – de viés populista. Nem Juca Kfouri consegue desbancá-lo.

Ignoro o que Cristina Lôbo e Jânio de Freitas disseram no documentário. Ignoro, igualmente, o que disseram Geneton Moraes Neto e Raimundo Pereira. Dedicarei este espaço final a analisar meticulosamente as palavras de Maurício Dias.

Maurício Dias disse: "Tudo piorou (na imprensa) a partir da ascensão do Lula. Ele não é parceiro da elite brasileira."

A partir da frase de Maurício Dias, deduz-se que a postura da imprensa caminha de acordo com o gosto da elite brasileira. Se a elite brasileira não gosta de Lula, a imprensa deve achincalhá-lo. Se a elite brasileira gosta de Lula, devemos ignorar os inúmeros e despudorados casos de corrupção de seu governo.

Ainda que por linhas tortas, Maurício Dias acertou. A imprensa, de fato, piorou com Lula. Com seu populismo rasteiro, Lula dividiu o país: os brasileiros e os antibrasileiros; os progressistas e os reacionários. A divisão foi premeditada. Através disso, Lula jogou a população contra a imprensa. Ele, Lula, seria o defensor do povo – povo leia-se: pobres. Já a imprensa, defenderia o interesse da elite. Que Lula pense assim não há o menor problema. Ele não me afeta. O problema é quando isso ganha eco na própria imprensa, a partir de jornalistas como Maurício Dias.

Devo ser justo. Não foi apenas Maurício Dias quem acertou, ainda que acidentalmente. Numa determinada passagem do documentário, Jorge Furtado afirma que Os Sertões, de Euclides da Cunha, "é o livro de não-ficção mais importante da história do Brasil". É duro concordar com Jorge Furtado. Mas ele está correto. No livro, Euclides da Cunha caracterizou os seguidores de Antônio Conselheiro como "uma gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, vezada à mandria e à rapina". Na verdade, Euclides da Cunha estava caracterizando o nosso caráter nacional, que Jorge Furtado comprovou, ao analisar a bolinha de papel em José Serra, e que Mino Carta ratificou, ao se preocupar com a extinção das pererecas. A partir do momento em que Jorge Furtado citou Os Sertões, eu passei a tratar o documentário O mercado de notícias como um estudo sócio-antropológico.

Euclides da Cunha também disse que os seguidores de Antônio Conselheiro tinham uma série de "atributos que impediam a vida num meio mais adiantado e complexo". Euclides da Cunha apenas antecipou o que a Unesco sacramentou no início deste ano: que somos o oitavo colocado no ranking dos países com maior número de adultos analfabetos, que somos um país repleto de seguidores de Antônio Conselheiro e que somos incapazes de viver num meio mais adiantado e complexo.

Fim. Fecham-se as cortinas. É hora do ínfimo e suspeito Romário, que é avesso ao trabalho e acostumado à mandria, sair de cena.

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