Vinte e um de Agosto. Botafogo. Fui assistir ao
documentário O mercado
de notícias. No cinema,
aproximadamente vinte e cinco pessoas. O local: Espaço Itaú de Cinema. A
companhia é irrelevante.
O documentário transcorre intercaladamente a uma representação burlesca
da peça The Staple of News, de 1625, escrita por Ben Jonson, o
grande rival de William Shakespeare nos palcos londrinos. O diretor de O
mercado de notícias é Jorge Furtado. No longa-metragem, debate-se a apuração
jornalística, a parcialidade – ou imparcialidade – da notícia e o papel do
jornalista na sociedade.
Sempre me incomodo quando alguém se põe a comentar sobre a atividade do
jornalista, mesmo que este desconheça a realidade de um trabalho jornalístico. Ainda
que tenha estudado jornalismo em algum momento da sua vida, Jorge Furtado faz
parte dessa turma que se mete a comentar sobre a profissão sem conhecimento de
causa. A partir do momento em que Jorge Furtado se propõe a questionar a
forma como se faz jornalismo, ele me dá o direito de poder questionar a forma
como se faz cinema no Brasil. Eu pergunto: Por que financiamento público para
filmes? Eu continuo: Alguém já fez uma pesquisa para saber se o brasileiro quer
ter o seu dinheiro gasto em produção nacional? Eu investigo: Será que o
boicote a Fernando Collor de Mello também tem a ver com o corte de
financiamento público feito às produções brasileiras à época?
Para atenuar a sua falta de conhecimento sobre o trabalho de um
jornalista, Jorge Furtado cercou-se, obviamente, de jornalistas. Em O
mercado de notícias, precisamente treze jornalistas foram entrevistados e
comentaram, basicamente, sobre a política do jornalismo e política no
jornalismo. Foram entrevistados: Bob Fernandes, Cristina Lôbo, Fernando
Rodrigues, Geneton Moraes Neto, Jânio de Freitas, José Roberto de Toledo,
Leandro Fortes, Luis Nassif, Maurício Dias, Mino Carta, Paulo Moreira Leite,
Raimundo Pereira e Renata Lo Prete. Quanto ao fato de treze jornalistas –
um número emblemático na política – serem entrevistados, é uma mera
coincidência.
A ousadia de Jorge Furtado foi tanta que eu fiquei desassossegado na poltrona.
Além de questionar a forma como se faz cinema no Brasil, passei a questionar os
jornalistas que foram selecionados para o documentário. Sigo os questionamentos:
Por que Paulo Moreira Leite foi escolhido? Por que Janio de Freitas e Mino
Carta estão lá? Quem é Maurício Dias? – juro, eu não o conhecia.
Aliás, o documentário me submeteu a uma busca incessante atrás de
informações dos entrevistados os quais eu não conhecia. Seguindo a ordem
alfabética, o primeiro foi Bob Fernandes. É um dos fundadores da Revista Carta
Capital. Atualmente, é editor-chefe do site Terra Magazine e comenta política na
TV Gazeta. Além de ser coautor do livro Bora
Bahêea! A História do Bahia Contada Por Quem a Viveu, da Coleção Camisa 13
– Epa! Olhem o treze de novo!
Como Bob Fernandes, Mino Carta, outro entrevistado no documentário,
também é um dos fundadores da Revista Carta Capital. Luis Nassif e Maurício
Dias são colunistas, também da Revista Carta Capital. Nota-se que a diversidade
e a imparcialidade na escolha dos entrevistados também foram mera coincidência.
Li algumas entrevistas de Jorge Furtado. Aliás, algumas não. Li minuciosamente
quatro entrevistas de Jorge Furtado: uma no portal UOL; uma na Revista Fórum; outra
em O Globo; a última, em Folha de S.
Paulo. Em todas as entrevistas, ele conta as razões pelas quais decidiu fazer o
documentário, atribuindo a si a responsabilidade de expor os tropeços da
imprensa e questionar a qualidade da informação no país. Penso que já seja
pretensioso e perigoso demais colocarmos nas mãos de Alberto Dines a
incumbência de "observar a imprensa", como ele mesmo propõe. Jorge Furtado é
muito mais pretensioso e perigoso do que Alberto Dines. Quando ele se propõe a
contestar a imprensa nas telas de cinema, lá estão sendo gastos o meu e o seu
dinheiro, sem a nossa permissão.
A tarefa de Jorge Furtado não seria das mais fáceis. O simples fato de
traçar um paralelo com The Staple of News o obrigava a tratar de assuntos que a peça de Ben Jonson abordara,
como o financiamento de veículos de imprensa e a ética profissional, por exemplo.
A abordagem de Jorge Furtado em relação a essas questões foi paupérrima. Foi
preciso pinçar declarações isoladas de José Roberto de Toledo e de Fernando
Rodrigues, em raros momentos de lucidez do documentário.
José Roberto de Toledo disse: "Quando se tem
um banner de uma estatal em um veículo de imprensa, há um problema."
Fernando Rodrigues disse: "O governo gasta,
aproximadamente, 1 bilhão e 500 milhões de reais em publicidade e propaganda. E
ainda tem sempre aquela discussão, se tem que dar mais pra um veículo e menos
pra outro. Não tem que dar pra ninguém!"
José Roberto de Toledo e Fernando Rodrigues estão corretíssimos. A partir
do momento em que determinado jornalista ostenta o anúncio da Caixa Econômica
Federal em seu Blog, ganhando o meu e o seu dinheiro, causa-me um frio na
barriga. Paulo Moreira Leite discorda disso tudo. Justificando o gasto
exorbitante de dinheiro público em publicidade e propaganda em veículos de
imprensa, ele lembra que "governos anteriores também gastavam e a imprensa não
se preocupava desse jeito". A partir desse engodo, Paulo Moreira Leite propõe
que os jornalistas – que, segundo ele, se calavam com os governos anteriores –
se calem agora. O sofisma de Paulo Moreira Leite recomenda uma estagnação da
imprensa.
A discussão do tema poderia ser mais ampla. No entanto, Jorge Furtado, ignorando
questões relevantes e que dizem respeito ao meu e ao seu dinheiro, perdeu
preciosos minutos tentando provar por a+b que, durante a campanha presidencial
de 2010, José Serra forjou ter sido agredido por uma bolinha de papel. São
mostradas imagens de um segurança de José Serra em direção a ele e, em dado
momento, a bolinha surge da direção do segurança. Em nenhum momento aparece, claramente,
o segurança jogando a bolinha de papel. Simplesmente achismo. Simplesmente
especulação. E, então, uma questão importante é levantada: quanto de certeza o
jornalista precisa ter para se noticiar algo? Renata Lo Prete, sem titubear,
respondeu: "Em princípio, 100%. Mas não é o que acontece". Obviamente, Renata
Lo Prete está correta. E o próprio documentário de Jorge Furtado comprova a tese.
Se o jornalista precisa de 100% de certeza para noticiar algo, o caso de José
Serra e seu segurança jamais seria mencionado no documentário, pois não há 100%
de certeza de que foi o segurança quem jogou a bolinha de papel.
Ao se atentar ao caso simplório de José Serra, Jorge Furtado me
frustrou. Se eu estivesse ostentando um pacote de pipoca na sala do cinema,
jogaria para o alto. A oportunidade era muito boa para ele aprofundar o tema. A
pergunta era muito boa. Inclusive, cito-a novamente. Cito-a incansavelmente: quanto
de certeza o jornalista precisa ter para se noticiar algo?
Inúmeros casos poderiam ser debatidos. Cito um: o goleiro Bruno,
ex-Flamengo, foi incriminado porque, através de algumas evidências e provas
subjetivas, chegou-se à conclusão de que ele foi o responsável pela morte de
Eliza Samúdio. Nenhuma prova concreta. Estou longe de ser defensor do goleiro
Bruno. Nem flamenguista eu sou – eles costumam defendê-lo. Mas, antes do
julgamento, Bruno virou manchete em todas as capas de jornais de circulação do
país. E, apenas depois, foi julgado e veio sua condenação. É discutível dizer
se ele foi ou não o responsável. Obviamente, o jornal noticia aquilo que
quiser. Faz parte da liberdade de expressão. Mas deve estar disposto a arcar
com as consequências que isso pode lhe causar.
Há um dado muito importante, que pouca gente leva em consideração, e
deveria ser um divisor de águas no modo como se faz jornalismo e o modo com que
se passa a informação. Uma pesquisa da Unesco, em Janeiro deste ano, apontou que o
Brasil é o oitavo colocado no ranking dos países com maior número de
analfabetos adultos. Outro dado da própria Unesco revela que, dos 36 milhões de
adultos analfabetos na América Latina, 38,5% são brasileiros. Os jornais
brasileiros deveriam entender para quem estão noticiando e como os brasileiros
recebem uma notícia. O simples fato de se estampar na capa de jornal "Goleiro
Bruno é acusado de matar Eliza Samúdio" induz um país, que ostenta 38,5% de adultos
analfabetos da América Latina, a crer que o goleiro Bruno é o culpado. A partir
do momento em que se tem esses números assustadores de analfabetismo, a
interpretação de texto por parte do leitor está absolutamente comprometida. O
jornal precisa ter o máximo de cuidado para não confundir especulação com fato
e vice-versa.
A sala de cinema na qual assisti ao documentário O mercado de notícias estava composta,
aparentemente, pelo leitor médio. Creio que ali não havia os adultos
analfabetos citados na estatística da Unesco. No entanto, quando foi
apresentado o caso de José Serra, onde as suposições apontavam para uma teórica
manipulação por parte do segurança, muitos riram, como se, de fato, fosse
forjado. A própria abordagem do documentário induz o espectador a crer que foi
o segurança de José Serra quem jogou a bolinha de papel. Repito: é simplesmente
achismo, é simplesmente especulação.
Se Jorge Furtado pode se aventurar a exibir achismos e especulações
despropositadas, eu me aventuro também. Talvez, o fato de José Serra ser do
PSDB implique diretamente com o olhar fixo de Jorge Furtado para o tema,
ignorando o caso do goleiro Bruno. Jorge Furtado, até por ser gaúcho, é o
marqueteiro preferido do PT no Sul. Jorge Furtado, que dirigiu a campanha de
Tarso Genro, do PT, à prefeitura de Porto Alegre. Jorge Furtado, que dirigiu a
campanha de Olívio Dutra, do PT, ao governo do estado do Rio Grande do Sul. Longe
de mim ventilar a hipótese de Jorge Furtado ter se apropriado de seu
documentário para fazer proselitismo político e denegrir a imagem de José
Serra. De minha parte, também se propagam apenas achismos e especulações.
Bolinha de papel à parte, eu me divertia verdadeiramente quando Mino
Carta aparecia no documentário para comentar algo. Perguntado sobre a
independência do jornalista, Mino Carta afirmou que há fatos excepcionais que
impedem a imprensa de publicar algo na capa do jornal. Lembro-me de um fato
excepcional, que impediu Mino Carta de publicar algo na capa de sua revista, a Revista
Carta Capital. Na semana em que o Supremo Tribunal Federal decretou a prisão
dos mensaleiros José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoíno, a capa da Revista
Carta Capital abordava a extinção das pererecas: "Os cientistas ainda temem uma
extinção em massa provocada pela ação humana. Mas há uma boa notícia: cai o
ritmo de desaparecimento de espécies".
Renata Lo Prete defende que o jornalista deve dizer de qual lado está: "O fato de se dizer qual é o seu lado, é o melhor caminho para que o consumidor
verifique se a notícia está manipulada ou não". Podem acusar Mino Carta de
petista. Podem, ainda, dizer que a Revista Carta Capital, de Mino Carta,
ignorou o maior julgamento do Supremo Tribunal Federal. Mas não se pode negar a
autenticidade de Mino Carta. Ele nos demonstra, religiosamente, a cada tiragem
da Revista Carta Capital, de qual lado ele está.
Como sou demasiadamente curioso, fui pesquisar quais são os
patrocinadores da Revista Carta Capital. E – Epa! – me deparei com anúncio de uma
estatal. José Roberto de Toledo e
Fernando Rodrigues devem se horrorizar com isso. Imediatamente, cocei o meu
bolso. E, em seguida, minha inocência constatou, somente a partir do que disse
Renata Lo Prete, que a notícia, sim, está manipulada na Revista Carta Capital.
Outra intervenção de Mino Carta me divertiu. Quando ele,
categoricamente, afirmou: "Os Barões Midiáticos acreditam que liberdade de
imprensa é poder dizer aquilo que eles bem entendem, sendo verdade factual ou
não". Por um momento, concordei com Mino Carta. Estranhei. E logo me dei conta
de que Mino Carta, sendo dono da Revista Carta Capital, faz parte do grupo
seleto de Barões Midiáticos da grande imprensa. Sendo Mino Carta um Barão
Midiático e seguindo a linha de raciocínio do próprio Mino Carta, pode se
afirmar que ele acredita que liberdade de imprensa é poder dizer aquilo que ele
bem entende, sendo verdade factual ou não.
Mais divertido do que Mino Carta só Maurício Dias. Realmente, eu não o
conhecia. E trato de fazer um mea-culpa
por isso. Se políticos têm a capacidade de persuadir eleitores através de
projetos sociais com viés populista, Maurício Dias tem o dom de engabelar
leitores e espectadores com opiniões – também! – de viés populista. Nem Juca
Kfouri consegue desbancá-lo.
Ignoro o que Cristina Lôbo e Jânio de Freitas disseram no documentário.
Ignoro, igualmente, o que disseram Geneton Moraes Neto e Raimundo Pereira. Dedicarei
este espaço final a analisar meticulosamente as palavras de Maurício Dias.
Maurício Dias disse: "Tudo piorou (na imprensa) a partir da ascensão do
Lula. Ele não é parceiro da elite brasileira."
A partir da frase de Maurício Dias, deduz-se que a postura da imprensa
caminha de acordo com o gosto da elite brasileira. Se a elite brasileira não
gosta de Lula, a imprensa deve achincalhá-lo. Se a elite brasileira gosta de
Lula, devemos ignorar os inúmeros e despudorados casos de corrupção de seu
governo.
Ainda que por linhas tortas, Maurício Dias acertou. A imprensa, de fato,
piorou com Lula. Com seu populismo rasteiro, Lula dividiu o país: os
brasileiros e os antibrasileiros; os progressistas e os reacionários. A divisão
foi premeditada. Através disso, Lula jogou a população contra a imprensa. Ele,
Lula, seria o defensor do povo – povo leia-se: pobres. Já a imprensa,
defenderia o interesse da elite. Que Lula pense assim não há o menor problema. Ele
não me afeta. O problema é quando isso ganha eco na própria imprensa, a partir
de jornalistas como Maurício Dias.
Devo ser justo. Não foi apenas Maurício Dias quem acertou, ainda que
acidentalmente. Numa determinada passagem do documentário, Jorge Furtado afirma
que Os Sertões, de Euclides da Cunha, "é o livro de não-ficção mais importante da história do Brasil". É duro
concordar com Jorge Furtado. Mas ele está correto. No livro, Euclides da Cunha
caracterizou os seguidores de Antônio Conselheiro como "uma gente ínfima e
suspeita, avessa ao trabalho, vezada à mandria e à rapina". Na verdade,
Euclides da Cunha estava caracterizando o nosso caráter nacional, que Jorge
Furtado comprovou, ao analisar a bolinha de papel em José Serra, e que Mino
Carta ratificou, ao se preocupar com a extinção das pererecas. A partir do momento
em que Jorge Furtado citou Os Sertões,
eu passei a tratar o documentário O mercado de notícias como um estudo
sócio-antropológico.
Euclides da Cunha também
disse que os seguidores de Antônio Conselheiro tinham uma série de "atributos
que impediam a vida num meio mais adiantado e complexo". Euclides da Cunha
apenas antecipou o que a Unesco sacramentou no início deste ano: que somos o oitavo
colocado no ranking dos países com maior número de adultos analfabetos, que
somos um país repleto de seguidores de Antônio Conselheiro e que somos
incapazes de viver num
meio mais adiantado e complexo.
Fim. Fecham-se as cortinas. É hora do ínfimo e suspeito Romário, que é
avesso ao trabalho e acostumado à mandria, sair de cena.
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